sábado, 24 de dezembro de 2016

Quando éramos muito jovens...


Quando éramos muito jovens, morávamos numa fazenda com nome de anjo. Nossa casinha ficava ao pé de um monte. Nela não havia energia elétrica, o ferro de passar roupas era à brasa. Também não havia água encanada, mas tínhamos um poço e o chuveiro era uma lata toda furada presa no teto. Nos dias de chuva, nos escondíamos debaixo da mesa da cozinha, caso o teto caísse. A casa era bem velha.


Quando éramos muito jovens, nosso meio de transporte era um caminhão FNM que o pai dirigia. O barulho do caminhão era mais ou menos assim: pó pó ró pó pó...
Com o caminhão íamos à cidade em dias de festa ou feriados. Ele não era luxuoso, mas tinha muito espaço.


Quando éramos muito jovens, brincávamos de balança-galhinho no meio das plantações. Era assim: uma criança cobria os olhos e as outras se escondiam em meio aos pés de soja. Depois a criança que ia procurar as outras dizia:
_Balança galhinho!!!
As crianças balançavam e se arrastavam para outro lugar. Era muito divertido.


Quando éramos muito jovens, também brincávamos nos buracos de erosão em dias de chuva. Quanta lama! Não sei por que motivo, nem ficávamos doentes. Tínhamos uma incrível resistência a doenças. Talvez pelo medo das injeções.


Um dia, mudamos de casa, nesta havia água encanada, energia elétrica e até televisão. Que casa grande! Nós morávamos em cima e as galinhas embaixo.
Havia um grande galinheiro abandonado no quintal, lá fizemos nossa casa de brincadeira.


Quando éramos muito jovens, tínhamos um tio muito inteligente. Ele construiu uma roda gigante que funcionava com motor. O único problema era que cada cadeirinha tinha que ficar com duas pessoas, senão o brinquedo disparava.
Acontece que uma criança pulou da roda gigante em movimento e o negócio disparou cheio de gente pequena em cima. Foi aquele Deus nos acuda. Mas o tio nos salvou.


Quando éramos muito jovens, todas as pessoas eram iguais. Não havia diferença de raça, religião ou classe social. Todo mundo era bom, era amigo e vivia unido.
Nas noites de junho, fazíamos fogueira no quintal e brincávamos de mês, de pular fogueira e ouvíamos histórias de fantasmas.


Aos sábados, havia bailes no salão. Todo o povo das redondezas comparecia e dançava a noite toda.
Aos domingos, havia jogo de futebol no campo, missa e catequese na igreja. O professor de catequese era muito inteligente e sabia cativar as crianças. Mesmo sem ele ter muito estudo, foi um dos melhores professores que tivéramos. Falava sobre Deus de uma forma bem humorada e simples. Fazia Deus parecer uma criança como nós: suave e terna.


Quando éramos muito jovens, não tínhamos brinquedos comprados em lojas. Fabricávamos nossos brinquedos: carrinhos de rolimãs, pipas, petecas...
Não era preciso muito coisa para sermos felizes. Inventávamos nossa felicidade.


Quando éramos muito jovens, íamos ao pomar da fazenda para apanhar mexericas, castanhas e goiabas. Havia o bastante para todos e não era preciso comprar.
De cima das árvores, o mundo ficava ainda mais lindo, o horizonte estendia-se e tornava-se mais e mais azul.


Quando éramos muito jovens, conversávamos com os animais. Para nós, eles eram pessoas em corpos diferentes dos nossos. 
Um dia, tentei dar uma rosa ao cavalo. Eu entendia a rosa e o cavalo. Mas o cavalo não me entendeu e quase me acertou um coice no rosto. Esse é o preço da inocência.


Quando éramos muito jovens, éramos tão felizes que nem percebíamos. O tempo passava tão devagar que a vida parecia eterna. O por do sol durava um dia inteiro. Deus parecia estar tão perto...


Quando éramos muito jovens, éramos jovens demais para perceber que o tempo passa; que a infância não é eterna; que o mundo talvez não seja nosso; e, às vezes, nós é que não estamos perto de Deus.
Quando éramos muito jovens, éramos jovens demais...


Alecrim, alecrim dourado
que nasceu no campo sem ser semeado.
Foi meu amor quem me disse assim
que a flor do campo é o alecrim.

(Cantiga popular)


* Alguns desenhos são releituras.
Livro produzido na década de 90.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O circo no Moreschi

 Bairro Moreschi (Fazenda Anjo da Guarda), local onde, possivelmente, o circo fora montado                                           ...