segunda-feira, 13 de maio de 2019

Deise e Peteleco







DEISE E PETELECO
     Ele viu seus donos se mudarem, mas preferiu ficar no mesmo lugar e ficou conosco, vivendo em uma das casas de madeira da colônia de café, na Fazenda Anjo da Guarda, em Itambé. Era um cachorro grande, sem raça definida. A névoa do tempo não me deixa lembrar bem de suas cores, talvez branco, preto e caramelo. Já veio com nome: Peteleco, que significa “pancada desferida com pouca força pelo dedo”. Como nós, irmãos, brigávamos muito, o nome do cão era ideal, já tínhamos outro cachorro que se chamava Belisco.
     Pois bem. Peteleco viveu ali por alguns anos, depois nos mudamos para outra, bem próxima, e ele foi junto. Não era manso como o Belisco, talvez por o termos adotado já adulto. Mas a convivência era praticamente pacífica. Ele só havia atacado duas pessoas e, se atacasse a terceira, seria morto.
      E havia a Deise, minha irmã caçula, que nessa época estava com quatro anos. Ela não era muito chegada em gente, detestava que relassem nela; no entanto amava animais, principalmente cães, os abraçava o tempo todo. Eu preferia o amor de contemplação. Gostava de observar os bichos e imaginar o que pensavam, quais eram seus sofrimentos e alegrias. Já a Deise, não. Seu amor era maternal, incondicional, desses que não se explica, apenas se vive.
      Um dia, eu estava na varanda dos fundos da grande casa em que vivíamos. A Deise e o Peteleco juntos a alguns passos de mim. De repente, ela quis brincar de cavalinho com o cachorro e montou nele. O animal ficou furioso ou assustado, não sei ao certo, e deu-lhe uma mordida no lado esquerdo do rosto, bem próximo ao olho. Ela gritou em desespero. Quando olhei, vi muito sangue jorrar. Na verdade, foi a primeira vez que vi alguém sangrando, foi horrível. Minha mãe saiu correndo da cozinha, onde preparava o almoço para a família e os camaradas da fazenda. Pegou minha irmã no colo e gritou por socorro.
       Meu pai não estava em casa, mas meu tio veio correndo ajudar. O cão foi se esconder debaixo da casa. Quando o tio viu a Deise naquele estado disse:
       _Tem que matar esse cachorro!
       Para meu espanto, a Deise começou a chorar ainda mais e implorava para que não matassem o Peteleco. Mas, como? Ela estava defendendo um bicho que quase a deixou cega! Que amor é esse?
        Meu tio achou melhor levá-la ao hospital e deixar o cachorro para mais tarde. Minha mãe não foi junto, porque tinha que terminar o almoço para um monte de gente. A Ducimara, nossa irmã, foi com eles  à cidade de Itambé procurar socorro no hospital do Dr. Lafayete.
      Quando voltaram, o cão ainda estava escondido debaixo da casa. Meu pai chegara e decidira que ele precisaria ser eliminado. Então minha mãe foi até o local em que o animal estava escondido e o chamou. Como o Peteleco confiava nela, saiu de lá de cabeça baixa. Depois foi levado para longe de casa numa caminhonete, enquanto minha irmã chorava com um enorme curativo no rosto.
      Eu fiquei olhando o cão, mesmo sendo criança, eu sabia que era a última vez o que veria. Seu olhar era de medo, pareceu que ele olhara pra mim, pareceu que me pedira socorro. Mas naquela época, final da década de setenta, quando acidentes com animais e pessoas aconteciam, era comum que o animal pagasse com a vida. Assim era e assim foi.
      Até hoje, a Deise tem as marcas daquela mordida no rosto e até hoje, lembra com tristeza e revolta da morte do Peteleco. Há pessoas que são atacadas por cães e ficam com medo deles para sempre. Incrivelmente isso não ocorreu com minha irmã. Ela nunca deixou de amar e cuidar de cães ou de qualquer outro animal. Atualmente, por imposição da minha mãe, a Deise não tem cães. Mas quatro gatos a adotaram e dos quais ela cuida com todo amor. Cuida também de gatos e cães de rua. Eu continuo na contemplação, tenho animais e gosto deles, mas não daquele jeito. Por isso, admiro quem tem essa dimensão de amor. Porque os animais estão sempre Farejando Ajuda*.

*Grupo de voluntários que cuida de animais de rua em Itambé-PR.

O justo importa-se com a alma do seu animal doméstico, mas as misericórdias dos iníquos são cruéis. (Provérbios 12:10)


O circo no Moreschi

 Bairro Moreschi (Fazenda Anjo da Guarda), local onde, possivelmente, o circo fora montado                                           ...