sábado, 23 de setembro de 2017



INSPIRAÇÃO

Era o meu segundo ano na universidade. Eu estudara à noite no ano anterior, mas decidi fazer permuta para o turno da manhã, a noite era muito deprimente. A turma era formada só por garotas. Todas já tinham suas amigas e eu era uma estranha no ninho. Às vezes, eu fazia umas piadas bobas para tentar me enturmar, o que piorava a situação, já que eu parecia ainda mais idiota.
Na verdade, eu nem sabia direito o que estava fazendo ali, no curso de Letras. Minha vida estava sem sentido. Era uma época em que tudo dera errado e eu me sentia perdida, sem rumo. Só estava ali, tentando estudar para esquecer todo o resto de mim. Mas ainda não havia encontrado um sentido para tudo aquilo.
Uma de nossas professoras deu um trabalho sobre o livro Euríco, o presbítero, de Alexandre Herculano. Romantismo, não?! Eu preferia a crueza, a verdade dolorosa do Realismo. Não queria ler aquele livro de jeito nenhum. O amor impossível entre Eurico e Hemengarda no reino visigodo, durante a invasão muçulmana. Um cavaleiro que decide ser presbítero para esquecer a amada. De histórias de amor, eu já estava farta.
No entanto, eu precisava fazer o trabalho. A obrigação gritou mais alto que minha inércia. A parte que me coube foi o ambiente da história. Então, como a preguiça é mãe da criatividade; li uma página do início e outra do final do livro e fiz dois desenhos, com giz de cera e lápis de cor, em cartolinas. O primeiro era uma paisagem campestre colorida, na qual o presbítero refletia à beira de um penhasco. A paisagem era imensa e o presbítero bem pequenino. Na segunda, havia um imenso cavaleiro negro em primeiro plano, ao fundo escuridão e casas pegando fogo. Armei-me da minha grande cara de pau e fui à aula.
A professora era uma mulher altiva, muito inteligente e exigente, seu nome correspondia à pessoa, Leide Luíza. Já lecionava há vários anos na universidade e conhecia Literatura como ninguém. Antes de mim, outra aluna fez sua apresentação. Ao final, a professora a repreendeu porque a apresentação "fora péssima" e, estava na cara, que a aluna não havia lido o livro. A discussão entre elas foi calorosa, o que aumentou minha tensão.
Chegou a minha vez de falar, lembrando que eu também não lera o livro. Não dava pra correr. Sendo assim, colei o primeiro cartaz no quadro e comecei a falar do ambiente na obra. Disse que no início da história o ambiente contrastava com o personagem principal, porque Eurico estava explodindo de revolta e tristeza por não estar ao lado da amada, mas a paisagem era tranquila e bela, o que o fazia sofrer ainda mais, tornando-o pequeno. A professora foi fazendo algumas perguntas e eu fui respondendo do jeito que dava. Depois colei o outro cartaz e disse que neste ambiente, no qual havia escuridão, fogo e guerra, o personagem crescia, porque colocara para fora toda sua revolta. Agora, as angústias de Eurico poderiam ser manifestadas em seus atos, não era preciso que o cavaleiro se reprimisse como o presbítero.
Quanto mais eu falava, mais a professora se interessava. Seu olhar havia mudado em relação a mim. Não sei o que era, mas algo estava diferente. Ao acabar minha apresentação, a professora me disse:
“Quando eu vi você aqui na universidade, pensei: O que essa menina está fazendo aqui? Parece que caiu de paraquedas e nem sabe o rumo que tomou? Mas hoje eu confesso que me enganei. Eu nunca havia me enganado com um aluno antes. Com você, eu me enganei. Você é uma artista.”
“Não, professora – disse eu - não sou artista. Esses desenhos, qualquer criança faz. Não há nada de mais neles.”
Minha consciência estava me condenando por eu não ler o livro e ter ludibriado a professora.  Ela estava certa em relação a minha pessoa. Realmente caí de paraquedas naquele curso. Então tentei diminuir suas expectativas em relação a mim. Porém, ela não parava de falar do quanto havia gostado da apresentação e até levou meus desenhos para mostrar aos alunos do turno da noite.
Não parou por aí. Daquele dia em diante, a professora passou a levar gravuras de pintores famosos para a sala de aula e falar sobre eles, sempre chamando minha atenção para as obras. Além disso, durante os dois anos em que lecionou para minha turma, ela repetia constantemente para mim: “Você é uma artista!” Como se aquilo fosse um mantra que eu deveria ouvir o tempo todo.
Até que um dia, a professora Leide levou obras de Van Gogh e começou a contar a história dele. Fiquei encantada. Desenhos rústicos e inconstantes, de quem está com pressa de viver. Fui à biblioteca e pesquisei mais sobre sua vida e obra. Que revelação! Um homem triste e desiludido que encontrou na arte sua glória e sua tragédia. Um pintor da posteridade que vendeu apenas um quadro em vida, mas que ficou famoso depois da morte. Um fracassado como eu! Amei!
Então comecei a desenhar constantemente. Eu não levava muito jeito para desenho, mas me esforcei porque agora havia um sentido para tudo aquilo. Alguns anos depois, expus meus desenhos na Semana de Letras da universidade com o tema Mulheres na Literatura. Foi o início de um sonho. Depois do desenho, estudei pintura, violão, violino, fotografia, cinema e, é claro, continuei a estudar literatura. Nunca levei jeito para nada disso, mas as palavras daquela senhora sempre voltavam a ecoar no meu coração e eu continuava me esforçando para aprender.
Há alguns anos, dei uma entrevista sobre meu trabalho a um jornal de Maringá. Falei da minha grande inspiração para trilhar os caminhos da arte: minha professora. Tentei entrar em contato com ela a fim de enviar-lhe a matéria e dizer o quanto sou grata a ela pela transformação que causou em minha vida, por ela me despertado. Mas, infelizmente, não consegui encontrá-la. Não fiquei rica ou famosa. Mas fiquei feliz por ter encontrado meu caminho, meu talento. Quantas pessoas ainda não conseguiram encontrar o seu. E, graças àquela professora, sei quem sou, sei o que sou. E eu que achava que não tinha nenhuma serventia.
Opa! Lembrei do que dizia outro professor, Milton, antes de tudo isso acontecer: “Quem não serve pra nada, serve pra arte.”

Denizia Moresqui

23/09/2017


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