terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Morcilha



                                                                               




Você quer saber se um homem é pra casar? Então vomite perto dele. Foi o que eu fiz. Deixe eu contar a história desde o início. 

Eu estava namorando um rapaz há mais ou menos um ano; nos conhecemos no carnaval e, aos trancos e barrancos, o relacionamento andou. Ele era sete anos mais novo do que eu, motivo "gravíssimo" pelo qual minha mãe sempre dizia que aquilo não daria certo. Porque eu, velha, iria dar trabalho a ele. Pois bem.

Um dia, o garoto me convidou para viajar com ele até o Rio Grande do Sul, visitar sua família. Eu, que amo viajar, não pensei duas vezes. Mas havia um problema, tenho um distúrbio chamado cinetose, que é causado por movimentos não habituais do corpo. Li estes dias, que nosso corpo foi programado para andar somente à pé, mas com a invenção dos meios de transporte, ele precisou se habituar a outros movimentos. A maioria dos seres humanos evoluiu bem à mudança, o que não foi o meu caso. Por isso, sempre preciso tomar medicamentos à base de dimenidrato para viajar, eles me deixam com sonho, pareço um zumbi.

Tomei a primeira dose do remédio e saímos bem cedo de Itambé, Noroeste do Paraná, ainda estava escuro. A cada duas horas, ingeria outro comprimido. A viagem foi longa, cerca de mil quilômetros até Jaguari, oeste do RS. Cidade pequena e acolhedora, cortada por um rio homônimo. Jaguari estava em festa pelo Grito do Nativismo Gaúcho, um festival de música regionalista. Os gaúchos são parecidos com os gatos, eles amam o que são e isso é muito bonito.

Ficamos hospedados na casa da Tia Maria, um doce de mulher e uma ótima cozinheira. Fazia comidas maravilhosas e eu comia o dia inteiro. Há tempos, eu queria comer chouriço, um embutido feito de sangue de animais. Desde criança, meu pai nos ensinou a comer coisas estranhas, como tripa, codeguin, testículo de boi, couro de porco cru... Não havia nada que não comíamos. O que eu mais gostava era chouriço. (Hoje não como mais por causa de preceitos bíblicos.) Então perguntei à Tia Maria se havia essa iguaria por lá. Era difícil de achar, mas às vezes havia. Ela, então, me recomendou outro alimento para substituí-lo, caso não o encontrássemos: a morcilha. Assim como o chouriço, a morcilha é feita de sangue, mas leva outros ingredientes como arroz ou farinha e gordura de porco. Bem leve!

Meu namorado me levou até ao supermercado em que sua prima Nice trabalhava e lá encontramos a tal morcilha. Comprei duas peças, elas tinham uns 25 centímetros cada uma. Então munida de meio metro de embutido, fui pra casa saborear minha conquista. O negócio era tão bom que eu comia a toda hora. Era morcilha no café, almoço, lanche da tarde, jantar. Meu namorado disse pra eu maneirar, que ia me fazer mal comer tanto daquele jeito. Mas se o amor é cego, a gula é surda. Continuei comendo.

Na noite anterior à nossa volta ao Paraná, comecei a sentir enjoos. Fiquei na minha, não quis contar ao rapaz, porque certamente ele diria: eu avisei! Então fiquei firme. De manhã, tomei o remédio, nos despedimos dos parentes e pegamos a estrada. À medida que o carro seguia viagem, vinha curva, ia curva, freia, corre, passa árvore, passa ponte, passa morro, passa pasto, passa boi, passa boiada... minha cabeça começou a rodar. Na serra de Santa Maria, não aguentei mais, pus a cabeça pra fora do carro e vomitei o mundo inteiro. A lataria ficou imunda. O rapaz, preocupado, olhou pra mim e perguntou se eu estava bem. Eu, pra não dar o braço a torcer, disse que sim, que poderíamos seguir viagem, que aquilo já tinha passado. Mas não tinha, tomei mais um comprimido. 

Continuamos o trajeto. Vomitei em Júlio de Castilhos. Depois em Cruz Alta, cidade de Érico Veríssimo, foi uma honra deixar meu DNA na terra de tão ilustre escritor. Seguindo viagem, vomitei em Panambi, Palmeira das Missões, região das antigas reduções jesuíticas. Vomitei em Frederico Westphalen, onde paramos para almoçar. Meu namorado perguntou se não era melhor eu fazer jejum, já que estava passando mal. Comi só salada e tomei água para me hidratar. Minha cabeça continuou rodando assim como os pneus do carro e seguimos viagem. 

Vomitei em Tenente Portela, Vista Gaúcha e no imponente Rio Uruguai. Chegamos à Santa Catarina, já seria Paraná se não fosse pela Guerra do Contestado, o confronto atrasou minha viagem. Vomitei em Iporã do Oeste e em Descanso. Quando não havia mais nada no estômago, comecei a vomitar uma água verde em São Miguel do Oeste. Não quero nem pensar no que era aquilo. Assim segui vomitando: São José do Cedro, Dionísio Cerqueira. Chegamos ao Paraná, vomitei em Santo Antônio do Sudoeste, Pérola do Oeste, Capanema, cidade muito bonita. Vomitei no Rio Iguaçu, fiz parte das Cataratas \o/. De Capitão Leônidas Marques até Cascavel, Corbélia, Rio Piquiri, Ubiratã, Mamborê, Piquirivaí.

Quando chegamos a Campo Mourão, o namorado já estava exausto de me ver vomitando. Parou numa farmácia e pediu ao atendente um solução para o caso, pois eu vomitei todos os comprimidos que tomei. O moço me deu uma injeção de dimenidrato, dose cavalar. Deitei no banco traseiro do carro e apaguei. Não dormi realmente, fiquei zumbizando, mas melhorei. Não vomitei no Rio Ivaí.

Quando chegamos a Itambé, já era noite. O garoto deixou-me em casa e foi embora. Pensei: esse nunca mais volta. Minha mãe me deu bastante água para ajudar na hidratação. Tomei um banho (?) Não, não tomei, não. Fui dormir. No dia seguinte, estava inteiraça. Nem parecia que tinha vomitado em todo o Sul país. 

Bem mais tarde, adivinhem quem voltou... sim, meu namorado, Lui. Estava acabado, parecia ter sido atropelado por um trator. Mas voltou. Então pensei: ele aguentou mil quilômetros de vômito e ainda está aqui! Que prova de amor! Esse é pra casar. Oito anos e muitos vômitos depois, casamos. Nunca mais comi morcilha, mas ainda vomito nas viagens. E até hoje minha mãe diz: avisado ele foi!!

O herói



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