quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Meu pé de goiaba



                                                    MEU PÉ DE GOIABA

      Quando se nasce numa fazenda, uma de suas primeiras obrigações é aprender a subir em árvores, principalmente frutíferas. Na Fazenda Anjo da Guarda, havia muitas: castanheira, mexeriqueira, laranjeira, pereira, mangueira, limoeiro, abacateiro... e por aí vai. 
      A tática é simples: primeiro você observa a árvore para ver se o fruto vale a pena; depois se aproxima do tronco, segura o galho mais baixo com uma das mãos e o outro já coloca no galho mais acima, enquanto seus pés vão procurando apoio no tronco. Quando olha ao seu redor, está cercado de frutas, que você come sem lavar. Abaixo, o chão é o limite, então é preciso se segurar firme.
       Havia árvores em volta da minha casa e no pomar, um pouco mais distante. Eu subia em todas. Meu recorde foi vencer uma paineira. Todo mundo sabe que o tronco da paineira é cheio de espinhos e ela não dá frutas. Mas ela dá paina. Como eu era chamada de cabelo de paina, queria ver de perto e sem sujeita de terra aquela pluma. A curiosidade é a mola propulsora da coragem. Fiquei toda estrepada, mas venci.
      A minha árvore preferida era a goiabeira, ou pé de goiaba, como dizíamos. Havia um atrás da privada. Eu ficava muito tempo lá em cima, observando as vacas no pasto. Sempre tive fascinação por altura e por goiaba. Então, estava no paraíso.
      Em julho de 1980, minha família mudou-se para a cidade de Itambé. Foi estranho. Nosso limite era a casa e um quintal com um abacateiro imenso e, para minha sorte, um pé de goiaba. Ele era magrelo, quase sem folhas e nenhum fruto. Nem sei se algum dia, aquela árvore teve a alegria de frutificar, mas era o que eu tinha agora.
       Eu subi no pé de goiaba e fiquei analisando ao redor. Meu horizonte diminuiu, vida nova. Como não havia goiabas, eu ficava conversando com a árvore, deitava em seus galhos, balançava, pulava no chão e subia novamente. Apesar de ficar bem próximo da casa, quando eu estava sobre a goiabeira, quase ninguém me via. Minha mãe me chamava pra enxugar louça, o que eu odiava, e eu ficava quietinha até a Ducimara enxugar, me praguejando. Quando me viam, diziam: “Lá está a macaca branca preguiçosa!”
       Um dia, percebi que a goiabeira florescera e, dentro de pouco tempo, apareceram seus primeiros frutos. O que começou timidamente logo explodiu em fartura. Eram tantas goiabas que nós e os bichos ficamos abastados. Meu pé de goiaba estava me presenteando pela atenção e carinho que eu lhe dava. Até uma árvore frutifica quando é bem tratada!
       Sim, meu pé de goiaba me deu frutas por vários anos. Mas um dia, a família decidiu construir um barracão no fundo do quintal. Poderia ser chamado hoje de edícula, era de madeira, com local para área de serviço e uma despensa. O quintal era grande, no entanto, decidiram cortar o pé de goiaba para construir bem em cima do mísero terreno que ele ocupava.
       Eu poderia ter protestado, dito que aquilo era uma absurdo, derrubar uma árvore com tanto espaço em volta, que fizessem o barracão mais para cima... eu poderia ter dito muita coisa. Mas eu não sabia discutir. Eu não disse nada. Resignei-me. Esse silêncio ainda grita em mim. Vi a queda do meu amigo, folha a folha, galho a galho, cortou-se o tronco e fim. Fez-se o barracão e minha árvore foi esquecida por todos, menos por mim.
      Até hoje, a goiaba é minha fruta preferida, não sei se pelo sabor ou pela história. Ainda não consigo discutir. Minha boca se cala e, se tento falar, gaguejo. A oralidade não é meu forte. Mas já desisti de ser diferente. Talvez o silêncio seja a única forma de expressar minha indignação. Talvez por isso, eu gostasse tanto do silêncio das árvores.

Denizia Moresqui


4/11/2016

7 comentários:

O circo no Moreschi

 Bairro Moreschi (Fazenda Anjo da Guarda), local onde, possivelmente, o circo fora montado                                           ...