quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Escadas e livros





                                                          
Sempre gostei de escadas. Em minha casa, na fazenda Anjo da Guarda, havia poucos degraus que eu descia e subia constantemente. Quando mudei-me para Itambé, descobri que para chegar a biblioteca pública, era preciso subir uma imensa escadaria. Porém eu ainda estava na 1ª série do primário. Sendo assim, oficialmente, eu não sabia ler com fluência e não poderia pegar livros emprestados na biblioteca. Tive que esperar o advento de 1981 para subir as escadas.
Então finalmente cheguei à 2ª série e meu sonho de escalar o conhecimento se realizaria. Acho que foi a Ducimara, uma de minhas irmãs, que me levou até à biblioteca, que ficava no sobrado da prefeitura, a uma quadra da minha casa. Era preciso entrar pelos fundos do prédio, onde havia uma rampa, no final desta uma porta de vidro dando acesso a dois lances de escada em espiral, que chegavam ao mesmo lugar. Depois desses, mais degraus em linha reta e um corredor. Que alegria! Pisei em todos como se pisasse numa passarela estrelada.
Adentrando à biblioteca, meu encantamento foi maior ainda. Havia estantes enormes cheias de livros. As grandes janelas de vidro deixavam à mostra a Praça Rui Barbosa, a Igreja Matriz e o posto de gasolina. Quis ir até a sacada, mas não podia, era perigoso. Fui então aos livros das prateleiras altas. Mas os que caberiam a mim eram apenas os de literatura infantil, que ficavam numa prateleira baixa para facilitar o acesso. Coloridos e cheios de desenhos, era um mais lindo que o outro. Então, fiquei uma eternidade tentando escolher qual levaria para casa, qual seria meu por alguns dias. Minha irmã me apressava, mas eu não tinha pressa em escolher meu sonho.
Enfim, precisei decidir. Não me lembro qual livro foi, só sei que o entreguei para a bibliotecária que fez uma ficha em meu nome e alertou que eu teria que devolvê-lo no prazo certo para não ter que pagar multa. Fiquei com medo. Depois, desci as escadas com meu troféu nas mãos. Descer era mais fácil que subir e, com o livro, a alegria era ainda maior.
Em casa, li o livro rapidamente e já queria voltar às escadas para pegar outro. Mas minha mãe disse que só voltaríamos no dia seguinte. O preço do amor é a espera. Quando amanheceu, já fui infernizar a casa para voltar à biblioteca. Minha irmã me levou lá novamente: a rampa, as escadas em espiral, as escada em linha reta, o corredor, a biblioteca, os livros... a sacada proibida.
“O quê? Eu não posso devolver o livro e pegar outro no mesmo dia?”
“São as regras da biblioteca, preciso verificar se não houve danos ao livro.” – disse-me a bibliotecária.
Tudo bem. Amanhã eu volto e posso subir mais vezes as escadas. E assim, passaram-se os anos do primário, entre escadas e livros. Sim, eu ia até lá por causa das escadas, mas os livros também me davam contentamento e meus pais ficavam orgulhosos porque eu lia muito.
Mas... eis que algo perturbador aconteceu. Certo dia, uma professora pediu para que lêssemos um livro e preenchêssemos uma ficha de leitura. Nesta, era preciso responder a questões e fazer um resumo. Não sei bem qual era o objetivo daquilo. Até então, para mim, ler era prazer e não dever. O pior é que o dever era para ser feito durante as férias de julho. Fiquei o mês todo desesperada sem saber qual livro leria. Por fim, não peguei nenhum da biblioteca. Uma vizinha me emprestou um sobre papagaios. Foi uma luta fazer aquela ficha. Principalmente porque eu não sabia fazer resumo. As férias se foram sem que eu as aproveitasse brincando ou lendo por diversão. Quando finalmente as aulas voltaram, percebi que apenas eu tinha feito a tarefa, todos os outros alunos sequer haviam se lembrado do trabalho e não perderam suas brincadeiras. Entreguei a ficha à professora que a colocou sobre a mesa, depois a jogou no lixo.
...
Muitas outros professores vieram depois com muitas outras fichas de leitura, uma mais exigente que a outra, querendo fazer a autópsia dos livros que, agora, eu era obrigada a ler. Acredito que os professores também não ficavam felizes com isso, mas era preciso avaliar a leitura, regras da educação.
E assim fui capengando até chegar o vestibular. Eu queria cursar jornalismo, mas não havia esse curso na universidade mais próxima, em Maringá. Minha família não tinha recursos para que eu pudesse estudar em Londrina. Então minha mãe sugeriu que eu cursasse Letras, porque sempre gostei de escrever.
Lá fui eu, capengando na leitura. Tive muitas dificuldades para concluir o curso. Uma noite, sonhei que estava na biblioteca da universidade tentando subir as escadas. Quanto mais eu subia, mais os degraus se encurtavam ao ponto de não caber nem meu pé, cheguei ao final do primeiro lance rastejando. O sonho, ou pesadelo, terminou sem que eu soubesse se conseguiria subir o restante das escadas e alcançar os livros, o conhecimento.
Consegui. Então deparei-me com meus próprios alunos e a terrível tarefa de avaliar a leitura. E agora? Confesso, que até hoje, eu não sei. Pois, como destacou Daniel Pennac: “O verbo ler não suporta imperativo.”*



                                                          Denizia Moresqui
                                                             24/10/2016


*Do livro Como um romance, 1997.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O circo no Moreschi

 Bairro Moreschi (Fazenda Anjo da Guarda), local onde, possivelmente, o circo fora montado                                           ...