quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

A pulada no algodão



       De todas as artes (travessuras) que fazíamos na Fazenda Anjo da Guarda, a pulada no algodão era nosso crime preferido. Digo crime porque nos era terminantemente proibido pelos adultos pular no algodão, não pelo perigo da prática e sim para não estragar o produto. E sabem como é: o que é proibido, mais a criança (molecada) quer fazer.
        Eu e toda a molecada (criança) da fazenda esperávamos os pais e funcionários irem trabalhar fora da sede e, quando a barra estava limpa, íamos à debandada para o grande barracão onde era armazenado o algodão. O local era imenso, pelo menos para mim, no alto dos meus seis anos e vinte quilos. Era feito de madeira e alvenaria em algumas partes. Fora construído para armazenar café, mas com a erradicação desta lavoura na fazenda  por causa da Geada Negra de 1975, passou a ser usado para armazenar algodão e soja.
         Pular no algodão não era tarefa fácil. Eu tinha que dar a volta por fora do barracão, subir numa passarela de madeira com frestas entre as tábuas. Eu morria de medo de cair pelas frestas, então subia a rampa de joelhos. Alcançado o alto da rampa, entrava pela porta do barracão e me lançava sobre o algodão. Eram os segundos mais felizes do meu dia, voar pelos ares e cair naquele monte macio e branco, que satisfação! Para pular novamente, eu precisava fazer todo o percurso novamente, o que demorava alguns minutos, devido às minhas pernas curtas e ao longo trajeto a ser percorrido de pés descalços por fora do barracão.
         Havia uma alternativa mais rápida. Ao lado do monte de algodão, se encontrava uma escada na parede. Era necessário subir por essa escada, andar por cima da parede que tinha uns dez centímetros de largura, até chegar à rampa que dava acesso ao pulo. Mas o processo era perigoso, se você caísse da parede para o lado oposto, era uma queda de uns cinco metros no chão duro de terra: morte certa. Ao contrário dos meus irmãos e primos, nunca tive coragem de me arriscar. Mas aquele negócio de ter que dar a volta no barracão toda hora para pular já estava me cansando.
        Como a preguiça é a mãe da evolução, resolvi tentar. A fila para subir na escada era grande, a espera aumentava meu medo, mas fiquei firme. Quando finalmente chegou minha vez, fui falando para mim mesma: “Você consegue!” À medida que subia, meu coração disparava e atrás de mim já se formara outra fila. Como eu ia devagar, as outras crianças foram ficando impacientes e gritavam: “Anda logo!” Então cheguei ao topo, olhei do outro lado da parede e vi que era bem mais alto lá de cima do que olhando de baixo. Travei. Não ia para frente nem para trás, ainda era preciso subir na parede e me equilibrar sobre ela até alcançar a rampa. Mas eu não me mexia. Eu ficaria ali o resto da vida, mas... (e sempre tem um “mas”) bem atrás de mim estava uma de minhas irmãs. Ela não possuía a delicadeza como virtude, além disso, sua mão era bem grande e pesada, juízo: ninguém tinha, mas ela ..... Para me forçar a sair e destravar a fila, ela me deu um empurrão de disse: “Vai!”
        Eu quase fui mesmo. Nesse momento, me desequilibrei para frente e já senti minha cara batendo no chão. Meu coração gelou e as pernas amoleceram. Era meu fim.      
        Mas os anjos fazem hora extra para as crianças. Não sei como, consegui me segurar na escada e evitei a queda. Imediatamente, comecei a descer por cima de todo mundo, gritando: “Eu quero descer, eu quero descer!” Deveria ter uns trinta moleques dependurados. Quando coloquei meus pés no chão, percebi que ainda estava viva. Quase beijei a terra. Então decidi:
       _Pra mim, acabou a pulada no algodão... agora só pulo na soja.

                                                                    Denizia Moresqui
                                                                        10/04/2014               

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