sábado, 24 de dezembro de 2016

Quando éramos muito jovens...


Quando éramos muito jovens, morávamos numa fazenda com nome de anjo. Nossa casinha ficava ao pé de um monte. Nela não havia energia elétrica, o ferro de passar roupas era à brasa. Também não havia água encanada, mas tínhamos um poço e o chuveiro era uma lata toda furada presa no teto. Nos dias de chuva, nos escondíamos debaixo da mesa da cozinha, caso o teto caísse. A casa era bem velha.


Quando éramos muito jovens, nosso meio de transporte era um caminhão FNM que o pai dirigia. O barulho do caminhão era mais ou menos assim: pó pó ró pó pó...
Com o caminhão íamos à cidade em dias de festa ou feriados. Ele não era luxuoso, mas tinha muito espaço.


Quando éramos muito jovens, brincávamos de balança-galhinho no meio das plantações. Era assim: uma criança cobria os olhos e as outras se escondiam em meio aos pés de soja. Depois a criança que ia procurar as outras dizia:
_Balança galhinho!!!
As crianças balançavam e se arrastavam para outro lugar. Era muito divertido.


Quando éramos muito jovens, também brincávamos nos buracos de erosão em dias de chuva. Quanta lama! Não sei por que motivo, nem ficávamos doentes. Tínhamos uma incrível resistência a doenças. Talvez pelo medo das injeções.


Um dia, mudamos de casa, nesta havia água encanada, energia elétrica e até televisão. Que casa grande! Nós morávamos em cima e as galinhas embaixo.
Havia um grande galinheiro abandonado no quintal, lá fizemos nossa casa de brincadeira.


Quando éramos muito jovens, tínhamos um tio muito inteligente. Ele construiu uma roda gigante que funcionava com motor. O único problema era que cada cadeirinha tinha que ficar com duas pessoas, senão o brinquedo disparava.
Acontece que uma criança pulou da roda gigante em movimento e o negócio disparou cheio de gente pequena em cima. Foi aquele Deus nos acuda. Mas o tio nos salvou.


Quando éramos muito jovens, todas as pessoas eram iguais. Não havia diferença de raça, religião ou classe social. Todo mundo era bom, era amigo e vivia unido.
Nas noites de junho, fazíamos fogueira no quintal e brincávamos de mês, de pular fogueira e ouvíamos histórias de fantasmas.


Aos sábados, havia bailes no salão. Todo o povo das redondezas comparecia e dançava a noite toda.
Aos domingos, havia jogo de futebol no campo, missa e catequese na igreja. O professor de catequese era muito inteligente e sabia cativar as crianças. Mesmo sem ele ter muito estudo, foi um dos melhores professores que tivéramos. Falava sobre Deus de uma forma bem humorada e simples. Fazia Deus parecer uma criança como nós: suave e terna.


Quando éramos muito jovens, não tínhamos brinquedos comprados em lojas. Fabricávamos nossos brinquedos: carrinhos de rolimãs, pipas, petecas...
Não era preciso muito coisa para sermos felizes. Inventávamos nossa felicidade.


Quando éramos muito jovens, íamos ao pomar da fazenda para apanhar mexericas, castanhas e goiabas. Havia o bastante para todos e não era preciso comprar.
De cima das árvores, o mundo ficava ainda mais lindo, o horizonte estendia-se e tornava-se mais e mais azul.


Quando éramos muito jovens, conversávamos com os animais. Para nós, eles eram pessoas em corpos diferentes dos nossos. 
Um dia, tentei dar uma rosa ao cavalo. Eu entendia a rosa e o cavalo. Mas o cavalo não me entendeu e quase me acertou um coice no rosto. Esse é o preço da inocência.


Quando éramos muito jovens, éramos tão felizes que nem percebíamos. O tempo passava tão devagar que a vida parecia eterna. O por do sol durava um dia inteiro. Deus parecia estar tão perto...


Quando éramos muito jovens, éramos jovens demais para perceber que o tempo passa; que a infância não é eterna; que o mundo talvez não seja nosso; e, às vezes, nós é que não estamos perto de Deus.
Quando éramos muito jovens, éramos jovens demais...


Alecrim, alecrim dourado
que nasceu no campo sem ser semeado.
Foi meu amor quem me disse assim
que a flor do campo é o alecrim.

(Cantiga popular)


* Alguns desenhos são releituras.
Livro produzido na década de 90.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

A lição



Era 1994, novembro. Eu estava no terceiro ano da universidade, estudava de manhã em Maringá, cidade vizinha a Itambé, onde eu moro. Era bem cansativo pegar o ônibus todos os dias, às seis horas da manhã e retornar às treze horas. Além disso, como eu era formada no Magistério, ainda trabalhava por contrato temporário como professora pela Prefeitura da minha cidade. Então, eu chegava de Maringá e ia direto para a escola, comia alguma coisa e já entrava na sala de aula, onde ficava até às cinco horas. 

Chegado o fim do ano, não via a hora do contrato acabar para eu não trabalhar mais. Seria um alívio poder só estudar. Mas minha família passava por sérios problemas financeiros. Por isso, minha mãe queria que eu continuasse trabalhando. Para sorte dela, a prefeitura abriu inscrições para um concurso de professores. Sendo assim, ela queria que eu participasse da seleção de todo jeito.

Eu, é claro, queria me safar. Estudar já era bastante cansativo: pegar ônibus, ficar numa sala de aula, voltar para Itambé, fazer trabalhos infinitos... Já estava bom demais só estudar. Trabalhar estava fora dos meus planos. Eu ainda não tinha consciência da minha realidade e de que eu já era adulta, síndrome do Peter Pan. 

Como eu me recusava a ir ao RH da prefeitura, minha mãe foi até lá e buscou a ficha de inscrição para que eu a preenchesse. No entanto, eu continuava contrária a proposta. Porém uma certa dor na consciência começou a tomar conta de mim. E o incômodo foi aumentando à medida que minha mãe insistia para que eu fizesse o concurso. Mas a preguiça ainda reinava.

Então tive uma ideia brilhante para aliviar meu remorso. Decidi consultar a opinião divina. Pensei: "Vou abrir a Bíblia e ler um versículo, que será a vontade de Deus. O que ele disser para eu fazer, eu faço." Mas na verdade, no fundo do meu eu interior, pensei: "A Bíblia tem 31.105 versículos*. Eu abro em qualquer um, leio e fico em paz com minha consciência. Afinal, Deus não disse nada. Será impossível encontrar no meio de tantos versículos um que me mande trabalhar." Como diria Machado de Assis: "Capciosa natureza!"

Mãos à obra. Peguei a Bíblia e ainda matutei: "Vou ler só um versículo para não correr nenhum risco." Abri em 2ª Tessalonicenses, capítulo 3, versículo 10, no qual está escrito: "Porque, quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, também não coma."

...

"MANHÊÊÊ, cadê aquela ficha de inscrição?


Eu trabalhando feliz


*Bíblia Almeida Revista e Corrigida.
Machado de Assis, do conto Uns braços.





sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Rio de Janeiro



Nunca pensei em visitar a capital fluminense, pelo que eu via na TV, achava uma cidade perigosa. Mas participei de um concurso de histórias, o Revelando os Brasis, e tive que ir até lá para fazer um curso de cinema, com duas semanas de duração. Amei, realmente uma cidade maravilhosa, quebrei meus preconceitos.

O concurso selecionava textos de quarenta pessoas de cidades com menos de vinte mil habitantes. As histórias eram transformadas em filmes e estes, além de serem exibidos em um circuito nacional, também fariam parte da grade de programação do Canal Futura. Então, os participantes precisavam dar uma entrevista ao canal, após o circuito. Sendo assim, fui ao Rio duas vezes, em 2010 e 2013. 

Na segunda vez, encontrei meus amigos do concurso se encontraram: Keila, de Treze Tílias-SC, Carlos, de São Borja-RS e Arthur, de Quixeré-CE. Eles eram bem jovens, poderiam ter sido meus alunos. Nós, quatro moradores do interior, deslumbrados novamente com tanta beleza e tantas ruas da cidade grande. Como ficaríamos quatro dias por lá, decidimos fazer alguns passeios, mas ninguém conhecia bem o Rio de Janeiro. 

A Keila, jornalista, sugeriu visitarmos uma exposição de fotojornalismo, na Caixa Cultural. Resolvemos pegar um táxi de Copacabana, onde estávamos hospedados, até o destino escolhido. Pra ir, foi beleza, Informamos o local desejado e o taxista nos levou até lá. 

As fotos da exposição eram tristes, de guerras, confrontos e algumas curiosidades humanas. O lugar era bem grande, imponente, com escadarias, várias salas para exposição e havia cinemas. Tudo lindo. Pensei: "Será que meu filme um dia estará aqui?" Mas logo caí na real: "Até parece que vão querer passar o filme de uma galinha caipira que caiu na privada num lugar tão majestoso!"

Depois da exposição, fomos à Cinelândia, que fica bem próxima à Caixa Cultural. Lá revimos o Teatro Municipal e outros prédios históricos. Era um encantamento sem fim para mim, que vivo num lugar onde tudo é tão novo, ver construções centenárias. Nos esquecemos das horas e da vida. 

No momento de ir embora, chamamos outro táxi. Quando o taxista perguntou: "Pra onde?" Surpresa! Ninguém se lembrava do endereço nem do nome do hotel. O deslumbramento nos deixou fora da casinha, ou melhor, do hotel.

O Arthur disse que era em Copacabana. O que não ajudou muito. Mas o motorista seguiu viagem enquanto tentávamos nos lembrar do nome da avenida. Eu e o Carlos só ríamos. Como disse o sábio Frejat: "rir de tudo é desespero." 

A Keila então se lembrou de algo importantíssimo, o hotel ficava perto de uma pracinha. O taxista disse que a informação não ajudaria, havia muitas praças no Rio. O Carlos então argumentou que na cidade da Keila deveria haver só uma, por isso ela teria achado a informação crucial.

Eu já estava pensando em qual viaduto nós iríamos dormir. Porque além de perdidos, estávamos duros. Além disso, por ser mais velha, eu me sentia responsável pela trupe.

"É numa avenida depois da praia!" - eu disse. 

"Deve ser Nossa Senhora de Copacabana"-emendou o taxista. 

Então a Keila, se lembrou de um detalhe fundamental: "Eu não sei onde é, mas pra chegar lá de táxi, custa R$ 23,85."

Todo mundo olhou pra ela, inclusive o taxista, que quase bateu o carro num poste. Realmente essa informação ajudou muito. Podíamos rodar até o taxímetro marcar 23,85, aí era só descer que estaríamos no hotel, não importando em que direção seguíssemos. Por que ao invés de decorar o preço da corrida, ela não decorou o nome do hotel? 

"Tinha um supermercado perto." Disse um.

"E um cinema de filmes para adultos." 

"Aquilo não é cinema, é outra coisa." Alguém retrucou.

"Tinha uma barraquinha de cachorro quente." Eu disse, porque de comida, eu me lembro. Mas nada do nome do hotel. Eu já me via procurando jornal na rua pra dormir na sarjeta.

Por um instante iluminado, um de nós se lembrou que havia dois leões de metal na frente do hotel. O motorista sabia qual era, Mar Palace. Aleluia! Nunca mais me esqueço desse nome. Ele foi nos conduzindo até lá. Quando estávamos bem próximos, a Keila falou: "Pode parar aqui na esquina mesmo, já estamos perto, conheço esse lugar."

Ao que o taxista protestou: "Mas no taxímetro ainda não deu R$23,85!!!!"



                                                       Na Caixa Cultural


Obs.: Um ano depois, o filme A Galinha ou Eu foi exibido na Caixa Cultural do Rio e de Fortaleza, num festival promovido pela mesma curadora da exposição de fotojornalismo. 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Entrevista à coluna O Diário na Escola (2013)


Apaixonada por educação e cultura

http://blogs.odiario.com/odiarionaescola/tag/a-galinha-ou-eu/

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Escrito por Nayara Spessato   
Qua, 05 de Junho de 2013 00:00
Imagine uma pessoa que passou toda a sua infância na fazenda, estudou em escolas do campo e na adolescência mudou-se para uma pequena cidadezinha do norte paranaense, Itambé, onde vive até hoje. E que neste fim de semana, voou para o Rio de Janeiro para dar uma entrevista ao Canal Futura, sobre o filme dirigido e produzido por ela “A Galinha ou Eu”. Esta é Denizia Moresqui atual chefe de divisão municipal de cultura de Itambé, formada em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), e pós-graduada em Psicopedagogia Institucional, começou a lecionar em 1995 atuando como professora por 12 anos até assumir o cargo em que está hoje. Denizia ficou conhecida pelos grandes trabalhos em prol da disseminação da cultura e educação.

1.     O DIÁRIO NA ESCOLA: Sua bagagem cultural é bastante ampla, desenvolve ao mesmo tempo projetos que envolvem teatro, cinema e música. De onde surge a criatividade para suas produções?

DENIZIA: Nunca me mudei de Itambé, estudei em escolas públicas que sempre motivaram os alunos a participarem de eventos artísticos, como: apresentações musicais, teatros, gincanas, entre outros. Minha infância foi muito rica, na fazenda, junto com muitas crianças podíamos brincar o dia todo e em qualquer lugar. Como não havia brinquedos prontos, nós mesmos os confeccionávamos, o que ajudou a estimular minha criatividade. Além disso, quando cursei Letras, os professores me ensinaram a entender e a amar a arte, inicialmente a literária. Comecei a desenhar e pintar por entender a arte como expressão máxima da linguagem. Depois, interessei-me pela música e fui estudar violino. O interesse pela fotografia veio em 2009, quando utilizei pela primeira vez uma máquina fotográfica digital, e pelo cinema surgiu através da televisão. Mas a vontade de fazer cinema só surgiu, em 2010, com o concurso Revelando os Brasis, antes dele, eu jamais havia pensado em produzir um filme.
2.     A vocação para trabalhar com educação apareceu em que momento da sua vida? E a paixão pela área da cultura, teve alguém que te inspirou?
O interesse pela educação surgiu quando eu tinha 14 anos e estava na 8ª série. Minha prima cursava o Magistério e foi fazer estágio no intervalo do Colégio Olavo Bilac. Eu fui com ela e fiquei brincando com as crianças. Quando tocou o sino, nos despedimos dos alunos e uma menina me chamou de “senhora”. Eu fiquei tão feliz com o respeito com que fui tratada que decidi: seria professora! Foi uma grande escolha. A maior inspiradora para que eu me tornasse artista foi a professora da UEM, Leid Luiza Carvenalli. Após eu apresentar um dos trabalhos da disciplina que ela lecionava, a professora me disse: “Você é uma artista. Eu achei que você era uma menina avoada que caiu de paraquedas neste curso. Nunca me enganei com alguém, mas com você sim”. Eu não acreditei, é claro. Mas ela falou a mesma coisa para mim durante dois anos em todas as aulas de literatura, levava livros e gravuras de grandes pintores para que eu os conhecesse e explicasse as obras. E assim, ela me convenceu.
3.     Há pouco tempo você desenvolveu o projeto “Tem Teatro” no qual alunos de 11 à 14 anos apresentaram fábulas de Monteiro Lobato. Com a era digital em que vivemos e os adolescentes sempre rodeados pelas tecnologias, como você consegue cativá-los para apresentações teatrais?
Em 2009, o Governo do Estado instituiu o Programa Viva Escola, de incentivo a atividades artísticas, esportivas e outras, em contraturno. Então montei o Projeto Tem Teatro, que visa ensinar alunos do 6º ao 9º ano a arte de representar e produzir textos teatrais. O projeto foi aplicado o ano todo. Em 2011, o novo governo também incentivou as atividades extraclasse e, novamente montei o projeto teatral, que está ativo até hoje. Gosto de encenar peças infanto-juvenis, pois vejo a necessidade de fazer as crianças serem crianças por mais tempo. Apesar de toda a tecnologia que os alunos têm acesso hoje, o teatro é milenar e vai continuar encantando a humanidade sempre. Pois tudo acontece ao vivo e, por mais simples que sejam os recursos utilizados, as histórias são irresistíveis. As próximas peças que encenaremos serão “A Comédia do Cheiro” e a “Formiguinha e a Neve”.
4.     O filme produzido por você “A galinha ou Eu” é uma divertida história de uma galinha que caiu na privada. Como surgiu a inspiração para esta produção?
A história aconteceu de verdade. Eu a mantive em segredo por trinta anos. Um dia, resolvi escrevê-la para trabalhar com meus alunos sobre lembranças da infância. Nunca pensei que iria virar filme. Quando soube do Concurso Revelando os Brasis, acreditei que a história teria chances de ser escolhida e enviei ao Instituto Marlim Azul, que promove o concurso. Quando eu fui ao Rio de Janeiro fazer o curso de cinema, percebi que as outras histórias escolhidas eram bem culturais e a minha, uma travessura de criança. Fiquei até meio envergonhada, mas quando a narrei para todos os outros Revelandos, a gargalhada foi tão grande que a vergonha passou.
5.     Como foi sua participação no concurso “Revelando os Brasis” promovido pela Petrobrás? No sábado, inclusive, você deu uma entrevista para o canal Futura sobre o filme que produziu. Em algum momento da sua vida imaginou que seus trabalhos teriam destaque nacional?
Eu sempre amei o meu trabalho, mesmo sabendo que era simples. Mas era o melhor que eu poderia fazer. Mesmo assim, me surpreendo com o destaque que alcançou. Durante o curso que fiz na Rio Filme, a Petrobrás escolheu apenas uma história das quarenta para acompanhar o trabalho de filmagens e edição, e fazer um documentário intitulado Raio X Petrobrás, para assim poder divulgar o projeto Revelando os Brasis em todo o país. Como meu filme envolvia galinhas e crianças, foi o escolhido. O que foi uma grande honra para mim. O filme “A Galinha ou Eu” já foi apresentado em vários festivais de cinema pelo Brasil, divulgando nossa cultura e nossas paisagens. Minha intenção é destacar todo o norte do Paraná, porque esta terra é maravilhosa, tem uma história fantástica e merece ser reconhecida e admirada por todos.
6.     O livro “História de Itambé” foi escrito por você, após três anos de muita pesquisa. Como foi a produção desta obra?
Foi um trabalho exaustivo, porque envolveu a digitalização de todo o material pesquisado. Contei com a ajuda de muitas pessoas que vivem e que viveram em Itambé. Estamos nos programando para o lançamento da obra, e também, um reencontro nas festividades do aniversário da cidade, no último final de semana de julho, para o lançamento da “História de Itambé”. Virão pessoas até de outro país.
7.     Depois de tantos anos trabalhando com educação e cultura, em especial direcionado a crianças e adolescentes, você acredita que tem auxiliado no processo de formação cultural do cidadão?
As palmas ao final de cada peça teatral, quando um aluno fala do meu filme, ou de algum quadro que pintei, quando se emocionam com meus textos, ou ainda com a música que toco ao violino, quando vejo que eles estão se interessando pela arte, pela cultura, pela nossa história, pela fotografia, quando eles dizem que também querem ser artistas… Sinto que tudo valeu a pena! Eu me entreguei à arte como quem se entrega à uma grande paixão, sem medo, sem reservas, sem grandes pretensões. E o que recebi de volta foi muito mais do que dei. A alegria que sinto de fazer com que crianças, adolescentes, adultos e idosos apreciem o que de mais belo um ser humano pode fazer, que é a arte, não tem preço. Nunca pretendi ficar rica com a arte, mas a riqueza que ela me deu é maior do que ouro ou prata: é a felicidade da realização profissional. A vida é curta demais para ficarmos o tempo todo correndo atrás de dinheiro.
http://www.asc.uem.br/uemnamidia/index.php?option=com_content&view=article&id=6505:-apaixonada-por-educacao-e-cultura&catid=13:o-dio-do-norte-do-paran&Itemid=2

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Morcilha



                                                                               




Você quer saber se um homem é pra casar? Então vomite perto dele. Foi o que eu fiz. Deixe eu contar a história desde o início. 

Eu estava namorando um rapaz há mais ou menos um ano; nos conhecemos no carnaval e, aos trancos e barrancos, o relacionamento andou. Ele era sete anos mais novo do que eu, motivo "gravíssimo" pelo qual minha mãe sempre dizia que aquilo não daria certo. Porque eu, velha, iria dar trabalho a ele. Pois bem.

Um dia, o garoto me convidou para viajar com ele até o Rio Grande do Sul, visitar sua família. Eu, que amo viajar, não pensei duas vezes. Mas havia um problema, tenho um distúrbio chamado cinetose, que é causado por movimentos não habituais do corpo. Li estes dias, que nosso corpo foi programado para andar somente à pé, mas com a invenção dos meios de transporte, ele precisou se habituar a outros movimentos. A maioria dos seres humanos evoluiu bem à mudança, o que não foi o meu caso. Por isso, sempre preciso tomar medicamentos à base de dimenidrato para viajar, eles me deixam com sonho, pareço um zumbi.

Tomei a primeira dose do remédio e saímos bem cedo de Itambé, Noroeste do Paraná, ainda estava escuro. A cada duas horas, ingeria outro comprimido. A viagem foi longa, cerca de mil quilômetros até Jaguari, oeste do RS. Cidade pequena e acolhedora, cortada por um rio homônimo. Jaguari estava em festa pelo Grito do Nativismo Gaúcho, um festival de música regionalista. Os gaúchos são parecidos com os gatos, eles amam o que são e isso é muito bonito.

Ficamos hospedados na casa da Tia Maria, um doce de mulher e uma ótima cozinheira. Fazia comidas maravilhosas e eu comia o dia inteiro. Há tempos, eu queria comer chouriço, um embutido feito de sangue de animais. Desde criança, meu pai nos ensinou a comer coisas estranhas, como tripa, codeguin, testículo de boi, couro de porco cru... Não havia nada que não comíamos. O que eu mais gostava era chouriço. (Hoje não como mais por causa de preceitos bíblicos.) Então perguntei à Tia Maria se havia essa iguaria por lá. Era difícil de achar, mas às vezes havia. Ela, então, me recomendou outro alimento para substituí-lo, caso não o encontrássemos: a morcilha. Assim como o chouriço, a morcilha é feita de sangue, mas leva outros ingredientes como arroz ou farinha e gordura de porco. Bem leve!

Meu namorado me levou até ao supermercado em que sua prima Nice trabalhava e lá encontramos a tal morcilha. Comprei duas peças, elas tinham uns 25 centímetros cada uma. Então munida de meio metro de embutido, fui pra casa saborear minha conquista. O negócio era tão bom que eu comia a toda hora. Era morcilha no café, almoço, lanche da tarde, jantar. Meu namorado disse pra eu maneirar, que ia me fazer mal comer tanto daquele jeito. Mas se o amor é cego, a gula é surda. Continuei comendo.

Na noite anterior à nossa volta ao Paraná, comecei a sentir enjoos. Fiquei na minha, não quis contar ao rapaz, porque certamente ele diria: eu avisei! Então fiquei firme. De manhã, tomei o remédio, nos despedimos dos parentes e pegamos a estrada. À medida que o carro seguia viagem, vinha curva, ia curva, freia, corre, passa árvore, passa ponte, passa morro, passa pasto, passa boi, passa boiada... minha cabeça começou a rodar. Na serra de Santa Maria, não aguentei mais, pus a cabeça pra fora do carro e vomitei o mundo inteiro. A lataria ficou imunda. O rapaz, preocupado, olhou pra mim e perguntou se eu estava bem. Eu, pra não dar o braço a torcer, disse que sim, que poderíamos seguir viagem, que aquilo já tinha passado. Mas não tinha, tomei mais um comprimido. 

Continuamos o trajeto. Vomitei em Júlio de Castilhos. Depois em Cruz Alta, cidade de Érico Veríssimo, foi uma honra deixar meu DNA na terra de tão ilustre escritor. Seguindo viagem, vomitei em Panambi, Palmeira das Missões, região das antigas reduções jesuíticas. Vomitei em Frederico Westphalen, onde paramos para almoçar. Meu namorado perguntou se não era melhor eu fazer jejum, já que estava passando mal. Comi só salada e tomei água para me hidratar. Minha cabeça continuou rodando assim como os pneus do carro e seguimos viagem. 

Vomitei em Tenente Portela, Vista Gaúcha e no imponente Rio Uruguai. Chegamos à Santa Catarina, já seria Paraná se não fosse pela Guerra do Contestado, o confronto atrasou minha viagem. Vomitei em Iporã do Oeste e em Descanso. Quando não havia mais nada no estômago, comecei a vomitar uma água verde em São Miguel do Oeste. Não quero nem pensar no que era aquilo. Assim segui vomitando: São José do Cedro, Dionísio Cerqueira. Chegamos ao Paraná, vomitei em Santo Antônio do Sudoeste, Pérola do Oeste, Capanema, cidade muito bonita. Vomitei no Rio Iguaçu, fiz parte das Cataratas \o/. De Capitão Leônidas Marques até Cascavel, Corbélia, Rio Piquiri, Ubiratã, Mamborê, Piquirivaí.

Quando chegamos a Campo Mourão, o namorado já estava exausto de me ver vomitando. Parou numa farmácia e pediu ao atendente um solução para o caso, pois eu vomitei todos os comprimidos que tomei. O moço me deu uma injeção de dimenidrato, dose cavalar. Deitei no banco traseiro do carro e apaguei. Não dormi realmente, fiquei zumbizando, mas melhorei. Não vomitei no Rio Ivaí.

Quando chegamos a Itambé, já era noite. O garoto deixou-me em casa e foi embora. Pensei: esse nunca mais volta. Minha mãe me deu bastante água para ajudar na hidratação. Tomei um banho (?) Não, não tomei, não. Fui dormir. No dia seguinte, estava inteiraça. Nem parecia que tinha vomitado em todo o Sul país. 

Bem mais tarde, adivinhem quem voltou... sim, meu namorado, Lui. Estava acabado, parecia ter sido atropelado por um trator. Mas voltou. Então pensei: ele aguentou mil quilômetros de vômito e ainda está aqui! Que prova de amor! Esse é pra casar. Oito anos e muitos vômitos depois, casamos. Nunca mais comi morcilha, mas ainda vomito nas viagens. E até hoje minha mãe diz: avisado ele foi!!

O herói



sábado, 10 de dezembro de 2016

A utilidade da crise




Há tempos, assisti ao filme Cidade da Esperança (1992), o qual contava a história de um jovem médico americano que decide dedicar sua vida a ajudar a população pobre da periferia de Calcutá-Índia. No local, havia um criminoso que dominava o povo com mão de ferro, impondo-lhes restrições de benefícios básicos, além de usar violência. O médio então foi falar com esse criminoso e questioná-lo do motivo desse tratamento à população. Então o homem pegou uma galinha e disse que se ele soltasse a galinha, ela sairia correndo e cacarejando e ele a perderia. Ele pegou um peso em forma de cangalha, pôs sobre a ave e concluiu dizendo que se o povo vivesse em crise, seria mais fácil dominá-lo.

Está aí a utilidade da crise. Durante o período da Ditadura no Brasil, foi captada uma gravação entre dois militares que discutiam como usar a crise econômica para manter a população pacificada. A gravação chegou à imprensa quando o país já era uma democracia, não causando assim tanto alvoroço. Mas isso mostra que a teoria da galinha do filme já citado é realmente usada pelos governantes.

Hoje o Brasil vive uma crise política. Todos os Poderes da República estão desacreditados pela população diante das investigações da Operação Lava Jato. O tapete não comportou tanta sujeira escondida e tudo está sendo descoberto e exposto numa série de investigações que já dura dois anos. Para tentar conter o avanço da Operação, a Câmara dos Deputados transformou as 10 Medidas de Combate à Corrupção em um salva-guarda para os corruptos. No Senado, o presidente da casa tentou votar a toque de caixa as medidas apresentadas pelos vizinhos para se blindar dos processos que correm no Supremo Tribunal Federal. O STF, por sua vez, permite que um réu continue na presidência do Senado para manter a "estabilidade política". No meio de tudo isso, a empreiteira Odebrecht assina um acordo de leniência com o MPF e inicia a delação do fim do mundo, na qual até o Presidente da República é citado, assim como alguns de seus ministros. E agora, o que fazer para conter a ebulição do povo?

Que tal Reforma da Previdência? Có có có ri có!!!!


Denizia Moresqui
10/12/2016

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O dia de matar o porco



        


       De vez em quando, no Sítio Pé no Brejo, a barriga pedia carne, não a carne branca do frango, nem a carne magra de boi. A barriga queria a opulenta e gordurosa carne de porco, que fazia entupir as veias e alegrava o  paladar. Mas sempre havia gente querendo faturar o porco alheio. Então tudo acontecia  como uma partida de futebol:

       “_ Bem amigos do Sítio Pé no Brejo, vai começar agora o grande espetáculo da roça: O dia de matar o porco. E as equipes já vão se aproximando do chiqueiro, de um lado: família Azambuja, dona do porco, do outro,  visitantes.  É com você Comem Tarista.
       _ A família Azambuja vem tentando faturar o seu próprio porco há várias rodadas. Mas sabe como é, os visitantes sempre aparecem e levam a melhor.
       _  Já vai começar a matança. O porco é escolhido e separado no chiqueiro. Véio Azambuja amola a faca. As crianças ficam atentas, não se importam com o coitado do porco, só querem saber do toucinho. Os irmãos Toim e Janjão seguram o bicho, o Véio vem com a faca e fuuuuraaaaaa... o bucho do porco.
       _ Foi uma furada e tanto. Ouça os gritos do suíno, Gavião do Mato.
       _ A galera vibra. É hoje que a gente mata a fome. Recolhem o sangue pra fazer chouriço, é só alegria.
       _ Os visitantes  já estão de olho nos melhores pedaços, antes mesmo do porco ser cortado.
       _ Os irmãos Azambuja pegam o animal, colocam sobre uma mesa rústica, jogam álcool no bicho e taaaaaacam fogo no pêlo.
        _ O porco ficou todo sapecado.
        _ Agora o Véio amola mais a faca. Rapa daqui, rapa dali e jooooooga os pelos fora. Prá foooooora, porco com pelo não dá.
        _ Beba Caninha Bafo de Onça. A pinga que todo pau d’água aprecia sem moderação.
        _ Está chegando um momento importante da lida: a hora de cortar o porco.
        _ Muita calma nesta hora. Senão dá briga!
       _ O Véio segura firme a faca, fura a garganta do porco e veeeeeem rasgando o bicho até embaixo. É tripa prum lado, é rim pro outro e quaaaaaaaaaase cai tudo no chão.
        _ Momento perigoso, quase que o Véio põe tudo a perder.
        _ Agora com o porco aberto, separa as tripas, separa o fígado, joga o que não presta fora e fimmm do primeiro tempo.
        _ Foi uma repartida e tanto até agora. A família Azambuja vem dando tudo de si, mas os  visitantes ficam só de butuca esperando o momento certo prá atacar. É com você, repórter Leitão.
        _ Estou aqui com uma das crianças da fazenda. O que você acha que acontecerá depois deste intervalo?
        _ A gente vai lá prá porta do paiol, esperar que o porco seja fatiado.
        _ O que vocês pretendem com isso?
        _ Nós vamos pedir toucinho. É uma delícia.
        _ Mas vocês vão comer cru mesmo?
        _ E daí?
        _ E os vermes?
        _ A gente deixa um pouquinho prá eles.
        _ Agora nós vamos dar uma parada para ir ao mitório e voltamos em poucos minutos com o segundo tempo da matança.
        _ Carroças Pé de Bode, segurança e rapidez no seu transporte. Quer ir longe? Vá de Carroças Pé de Bode. As únicas com burro embutido.
        _ Sensacional Baile Caipira. Venha e traga sua família. Neste sábado, a partir das nove da noite no Salão Chaparral, onde sua noite é animal.
        _ Bem amigos do Sítio Pé no Brejo, voltamos para o segundo tempo da matança do porco. O bicho já foi levado para o paiol. A família Azambuja  se posiciona dentro e fora do local. Os visitantes, com cara de quem não querem nada, ficam por ali na observação. O Véio corta a cabeça do animal, depois as patas. Passa a faca pro Janjão que dribla uma costela, dribla outra...
         _ Olha o grito da galera.
         _ Comê, comê, comê...
         _ Janjão passa a faca pro Toim. Mas o que aconteceu com o Janjão?
         _ Ele pede pra sair, alegando que está sentindo a panturrilha de porco que  comeu.
         _ Bem na hora do toucinho!
         _ É, o toucinho é aguardado ansiosamente pelas crianças. É um momento de muita responsabilidade. Será que o Janjão amarelou?
         _ É uma questão complicada de responder. Entra no lugar do Janjão, o Balança Pança.
         _ O Balança Pança é um cortador de habilidade. Veja só a barriga dele. É preciso cortar muita carne pra encher aquilo tudo. Dizem até que ele está sendo cotado para cortar carne de vaca louca na Europa.
         _ Balança Pança pega a faca. Corta um toucinho, dois, três e joooooooooogaaaa prás crianças. Mas o cachorro catou. Inacreditável, o cachorro catou.
         _ Esse cachorro deve ser de algum visitante. Entrou bem na frente da molecada e abocanhou o toucinho. A visita, quando vem, traz até os cachorros.
         _ Mata Berne do Juvenal. Você e seu gado estão com bernes, usem o Mata Berne do Juvenal. Vendido em qualquer venda de fazenda.
         _ O porco está todo cortado. Agora vai ser repartido. Cabeça pro padrinho do Jorjão, costelinha pra Dona Margarida, lombinho pro guarda.
         _ Pro guarda? Mas o que é que o guarda tá fazendo aqui?
         _ É ele que quebra os galhos da família.
         _ Tá explicado.
         _ Chouriço pro Zé da Horta, tripas pra Dona Divina.
         _ Mas o que que a Dona Divina vai fazer com as tripas?
         _ Sabão prá vender. A mulher precisa viver.
      _ É agora, é agora que vai chegar o pernil. Familía Azambuja tenta pegar, mas os visitantes atacam, passam por cima de todo mundo e é... gol, gooooooooolodice dos visitantes. Goooooolodice. Foi Balança Pança prum lado, pernil pro outro e os visitantes levam a melhor.
         _ Você vê a cara de desolação da Família Azambuja. Perderam as tripas, a costelinha, o lombinho e agora o pernil. É um momento desesperador.
         _ Mas o que é isso, Balança Pança parte pra cima dos visitantes. A família Azambuja chega prá tentar amenizar a situação. Deixa disso, Balança Pança.
         _ Vai ser expulso da lida. Brigar por causa de mistura é muito feio!
         _ Tá complicada a situação da família Azambuja. Complicada a situação. E agora ela tem um cortador a menos.
         _ Só um milagre agora pode mudar o resultado desta repartida.
       _ Ainda restam alguns pedaços do porco, quem levará o fígado? Mas o que é isso, o juiz mandou o oficial de justiça dar um documento  pra família Azambuja. O sítio vai pra leilão. O Sítio Pé no Brejo vai pra leilão. É com você Arnaldo Trata Coelho.
         _ A regra é clara. Não pagou as dívidas, perde o sítio.
     _ A família Azambuja ajuda todo mundo, os visitantes vão ajudá-la nesta situação embaraçosa.
         _ É? Olha só, os visitantes correndo. Nesta hora, todo mundo dá no pé.
         _ Fim de porco. Visitantes tudo, família Azambuja nada.
       _ Depois desta repartida, a família Azambuja cai pra segunda classe social. Agora o jeito é tentar entrar para o Movimento dos Sem Tudo e voltar pra primeira classe na próxima década.
         _É um rebaixamento terrível, visto o esforço desta família na distribuição da carne.
         _Mas a vida é assim: hoje se perde, amanhã também.
         _Obrigado a todos pela paciência e até o próximo porco.
         _O chiqueiro também será leiloado, não haverá próximo porco.
         _Ah, é. Até o próximo arroz com feijão e farinha. Porco, a gente não vê mais ele aqui.”

             Denizia Moresqui
                    22/02/08

         

O circo no Moreschi

 Bairro Moreschi (Fazenda Anjo da Guarda), local onde, possivelmente, o circo fora montado                                           ...