sexta-feira, 3 de março de 2017

Meu pai


Minha mãe, eu e meu pai
1975

As primeiras lembranças o mostram de chapéu cor palha, calças escuras, camisa, sapato preto e cigarro na boca. Assim se vestia todos os dias. Alto, magro e extremamente calado. Irineu, palavra que significa pacífico. Não sei se o nome influenciou sua personalidade ou se ganhou esse nome por mostrar sua pacificidade desde bebê.

Apesar de pacífico, exercia uma enorme autoridade sobre os filhos. Cinco, um menino e quatro meninas. Minha mãe queria menos, mas ele dizia: "quem cria um cria dez". Então ficamos na metade. Mas, como meu pai não era bom em palavras, não conseguiu decorar os nomes das meninas. Então chamava todas nós de Dulcinéia, o nome da mais velha, ou por alguma característica física. Eu era a polaca, alemoa ou qualquer coisa muito branca.

Como eu já mencionara, a autoridade dele sobre nós era imensa. Minha mãe nos dava bronca e chineladas todo dia. Já ele não, bastava um olhar, nosso sangue gelava e o rosto ruborizava. Poucas vezes foi necessário colocar qualquer um de castigo ou dar palmadas. Talvez o fato de ele falar tão pouco e, muitas vez nem entendermos o que dizia, o tornava um ser misterioso. O mistério causa medo.

Para entender melhor a forma dele educar, relembro um episódio inusitado. Há uns duzentos metros de nossa casa na fazenda, foi feita uma represa. Como éramos muito jovens e não sabíamos nadar, aquilo seria um perigo. Qualquer pai diria a seus filhos: "Não vão até lá porque é perigoso." Mas meu pai parecia nos conhecer bem, além de não gostar de falar. Enfim, palavras não adiantariam. Um dia, chegou em casa com um filhote de jacaré. A coisa era pequena, mas iria crescer e se tornar um monstro. Ele nos mostrou o bicho e disse: "Vou pôr na represa". E pôs. Nem é preciso dizer que ninguém se aproximou da água. Olhávamos o jacaré de longe. Era nosso mito, nosso monstro do lago Ness. Depois meu pai arrumou uma namorada para o bicho.

Quando cresci mais um pouco, isso é, cinco ou seis anos, demonstrei grande interesse por desenhos e palavras. Então, algo mudou. Ele começou a se comunicar mais comigo. Pegava livros nos quais havia desenhos em sequência e pedia para eu contar uma história. E eu contava. Quando estava de bom humor, eu inventava um monte de detalhes, quando não, apenas descrevia a cena. Eu era capaz de contar várias histórias diferentes com os mesmos desenhos, mudando os nomes dos personagens, enredo e desfecho. Ele ficava todo orgulhoso e falava de mim para todos os parentes. Nessa época, eu também o admirava, apesar de já começar a reconhecer suas falhas.

Com o tempo e a percepção das falhas de ambos os lados, nos afastamos, ainda que morando na mesma casa. Cresci e parei de contar histórias para ele. A cada dia nos falávamos menos e a distância foi crescendo.

Eu não queria que meu pai fosse tão pacífico e tão distante. Queria que ele exercesse autoridade sobre a própria vida, da mesma forma que a exercia sobre nós. No entanto, a pacificidade era sua natureza, sua marca, seu nome. E ele esperava muito de mim, por acreditar na minha inteligência. Entretanto, eu não correspondi às suas expectativas. Nos decepcionamos. 

Quando ele morreu, aos 57 anos, não havia nenhum motivo para que se orgulhasse de mim. E essa é uma história que eu jamais poderei mudar.


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