Laranjeira brava
Eu já morava na cidade de Itambé, estava com uns dez anos. Mas, quase toda semana, minha família ia até a Fazenda Anjo da Guarda, na qual morei até os sete anos, para passear. Num desses passeios, fomos em dez crianças e três adultos. Eu, meus irmãos, primos, tia, mãe e pai, numa caminhonete F4000 azul. Naquele tempo, era permitido andar sobre a carroceria, sendo adulto ou criança.
Chegando lá, todos foram procurar alguma coisa para brincar. Minha mãe e a tia ficaram na varanda de nossa antiga casa. Meu pai foi à oficina fazer alguma gambiarra. Eu avistei, no pasto, um pé de laranja brava, também conhecida como laranja da terra. A gente chamava de laranja brava, porque era tão azeda que não tinha quem comia, só o gado mesmo. Mas com sua casca, dava para fazer um doce delicioso. Fui pedir à mãe para que ela fizesse o doce pra mim. Ela se recusou, porque dava muito trabalho. Eu insisti por uns trinta minutos sem parar. Até que ela falou:
"Se você apanhar as laranjas, eu faço."
Acho que ela só disse isso para ver se eu desistia. No entanto, o que me faltou em estatura e força, Deus compensou em persistência. Fui pedir ajuda aos meus irmãos e primos. Éramos uma dezena, seria fácil e rápido apanhar as frutas. Mas, um a um, todos se recusaram a me ajudar, porque já estavam brincando e não queriam serviço.
Como o desejo nos escraviza, decidi que apanharia as laranjas sozinha, a qualquer custo. Peguei um saco e rumei para o pasto. Antes de pular a cerca, me certifiquei de que não havia vacas por perto, me prevenindo de uma chifrada. Vi que elas estavam na beira do córrego, bebendo água e descansando debaixo de uma grande árvore.
Pulei a cerca, caminhei uns trinta passos até o primeiro pé de laranja brava que avistei. A árvore era pequena, mas estava carregada de grandes frutas amarelas. Vendo assim, até pareciam doces; mas eram enganosas. Subi na árvore sem dificuldade e passei a apanhá-las e jogá-las ao chão, onde estava o saco. Como este serviço era fácil, me empolguei e catei laranjas demais. Quando desci da árvore, o chão estava coberto de frutas. Não quis deixar nenhuma para trás, porque minha mãe nos ensinou a não desperdiçar as coisas.
Catei todas e as coloquei dentro do saco, que ficou quase maior que eu. Agora eu precisava levá-lo até a caminhonete. Tentei colocá-lo nas costas, mas caí para trás. Tentei erguê-lo à minha frente, não consegui. O jeito foi arrastá-lo. Fui puxando o saco, puxando o saco. Os trinta passos até a cerca pareciam uns quatro quilômetros. O sol estava quente, o que tornava a tarefa ainda mais árdua. Depois de uns vinte minutos, cheguei à cerca, passei o saco por baixo do arame farpado e chamei minha mãe.
Imaginem a cara de desgosto dela quando viu o saco. Como não tinha escapatória, ela me ajudou a colocá-lo sobre a carroceria da F4000. Depois tomei água e desabei no piso de vermelhão da varanda. Fiquei lá o restante da tarde, me recuperando.
Lá pelas cinco horas, meu pai nos chamou para irmos embora. Subi no veículo e fiquei segurando a boca do saco para que as laranjas não se espalhassem pela carroceria e voassem pela estrada. Enquanto isso, o restante das crianças apreciava a paisagem e curtia o vento nos cabelos. Dez quilômetros e muitos chacoalhões depois, estávamos em casa.
Tirado o saco da carroceria, já pedi pra minha mãe fazer o doce.
"Só amanhã, agora vocês tem que tomar banho e eu vou fazer a janta." Minha mãe nunca saía da rotina. Então tive que esperar o amanhã chegar.
Acordei bem cedo e já persegui a progenitora para que ela fizesse o doce. Ela disse que eu teria que ajudá-la, porque havia outros serviços a fazer. Pegamos o saco com as laranjas e começamos a tirar a pele mais superficial das frutas, pois o doce é feito com a parte de dentro da casca. Em seguida, era preciso cortar a fruta em forma de X e tirar os gomos, que eram jogados no lixo. As cascas foram postas em uma grande bacia de alumínio, uma que a gente usava para tomar banho; mas estava limpinha. Depois de me ensinar o serviço, minha mãe foi limpar a casa.
O trabalho com as laranjas era cansativo, era fruta que não acabava mais. Que arrependimento de ter pego tantas. Meus irmãos nem passavam perto de mim, com medo de sobrar trabalho para eles. Após horas de lida, terminei.
Fui correndo avisar a mãe, para que ela colocasse as laranjas logo no fogo.
"Não. Precisa por na água por quatro dias para tirar o azedo. Só depois, é que vamos cozinhar." Retrucou ela.
Quatro dias! Que agonia. Aquela espera estava me matando. Mas, fazer o quê? Havia uma mesa ao lado do tanque. Então, ela encheu a bacia com água e me disse que era preciso trocar a água duas vezes ao dia. E adivinhem de quem seria a tarefa.
No fim da tarde, quando cheguei da escola, lá fui eu para mais uma etapa do doce que nunca ficava pronto. Peguei uma canequinha e, aos poucos, tirei toda a água da bacia e joguei no tanque. Em seguida, enchi novamente. No dia seguinte, bem cedo, repeti o serviço... à tarde também... no outro dia também... na outra tarde também. Aquilo não acabava nunca. Como sempre detestei rotinas, era uma tortura para mim. Assim seguiram-se quatro longos dias.
No quinto dia, acordei entusiasmada, finalmente as laranjas iriam ao fogo. Minha mãe preparou o fogão à lenha da cozinha, pôs lenha, ateou fogo e colocou um taxo em cima; adicionou açúcar e água, mexeu com uma grande pá da madeira, colocou as cascas de laranja, que quase transbordaram, e cravo-da-índia . Então me disse:
"Você vai ajudar a mexer. Mas tome cuidado."
Lá fui eu mexer o tacho. Senti-me como uma feiticeira da Idade Média fazendo suas poções mágicas. Até que foi divertido... no começo. Após alguns minutos naquele calor, já não tinha mais graça. Além disso, as cascas foram murchando, murchando, até que ficou pela metade do tacho. Que decepção! Mas o que restou ainda saciaria meu desejo pelo doce.
Quando as cascas estavam douradas, minha mãe disse que estava pronto.
"Oba, vou comer!"
"Só depois que esfriar. Doce quente faz mal."
Ela tirou o doce do tacho e colocou num caldeirão de alumínio. Só me restou esperar. Fui à escola, a aula parecia que nunca mais ia acabar. Quando cheguei, fui direto para o caldeirão, que já estava pela metade. Meus irmão, que estudavam de manhã, já tinham descoberto meu tesouro. Tudo bem, ainda sobrara bastante para vários dias. Peguei um pratinho e um garfo, pus uma tantada para mim e saboreei como um manjar dos deuses. Valera a pena cada sacrifício para comer aquela maravilha. Um sabor agridoce, exaltado pelos cravos. Limpei o prato em poucos segundos e já estava pronta para pegar mais, quando minha mãe vociferou:
"Não come demais, senão você vai passar mal. Deixa pra amanhã."
O dia seguinte era sábado. Teria muito tempo para comer. Tudo bem.
A minha casa sempre foi cheia de visitas, já que minha mãe sempre tratou as pessoas com carinho. Mas naquela sábado, foi demais. Foi visita o dia inteiro. Até quem eu nem conhecia apareceu lá. Saiu gente até do bueiro! E a cada um minha mãe dizia:
"Tem doce de laranja brava. Toma, tá uma delícia!"
Olha, não que eu fosse uma criança egoísta... bem, talvez um pouco. Mas, foram tantos sacrifícios para fazer o doce e agora ele estava acabando de um dia para o outro. Além de dar meu doce para as visitas, minha mãe ainda falava:
"Leva um pouquinho pra sua casa, seu filho vai gostar."
E assim, de visita em visita, tudo foi se acabando, até não restar mais nada. Pensei que teria doce por vários dias, amarga ilusão. Diante do caldeirão vazio e de toda a lida dispensada ao doce, eu me senti A Galinha Ruiva e fiquei brava igual a laranja.
Eita que mãe! Tem certeza que não era madrasta?
ResponderExcluirKkkkkkkkk
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