domingo, 11 de agosto de 2019

NÃO ME ESQUEÇA





NÃO ME ESQUEÇA
Uma história real com licenças poéticas

      Rafaela começara a estudar de manhã no CMEI Branca de Neve. Era seu segundo ano no centro. Entrou na sala para conhecer sua nova turma. As crianças estavam agitadas com o primeiro dia de aula, a professora as acolhia com alegria. Todos os alunos tinham aproximadamente quatro anos.
Então Rafa percebeu um menininho com as duas mãos protegendo os ouvidos por causa do barulho das outras crianças. Aquilo tudo parecia incomodá-lo muito, mas ela não sabia o porquê. A professora pediu para que os alunos se sentassem e iniciou a aula. 

Com o passar dos dias, a curiosidade da menina aumentava em relação àquele colega que não gostava de barulho. Outra coisa que percebera é que uma moça o acompanhava dentro e fora da sala de aula. Só ele tinha esse privilégio, o que Rafaela achou injusto a princípio. O menino parecia não gostar de brincar com outras crianças, preferia ficar sozinho ou na presença de adultos. Além disso, ele não conversava, apenas falava poucas palavras, algumas fora de contexto, outras com pronúncias quase incompreensíveis. Não olhava nos olhos das pessoas, seu olhar fugia sempre. “Qual era o segredo do Fernando?” - se perguntava a menina.

Um dia, durante a aula, a professora mostrou um cartaz com uma palavra para a turma. Ninguém sabia ler, não eram alfabetizados ainda. Para surpresa de Rafaela, o Fernando leu, o menino que quase não falava leu. Como aquilo era possível? Rafa ficou espantada, mas outras crianças não. Pareciam estar habituadas a vê-lo ler. Mais um mistério sobre o garotinho. “Será que a estagiária o ensinou?” – pensou.
E assim os anos foram passando e um laço de amizade foi se formando no coração de Rafaela por Fernando. Ela e outras meninas gostavam de cuidar dele quando a estagiária não vinha. Não deixavam outros meninos fazerem bullying com ele, nem que ele fugisse do centro, algo que já ocorrera um dia.

Mudaram de escola e a amizade continuou. Fernando era um tanto ausente. Às vezes brincava com as crianças e outras vezes preferia ficar sozinho, folheando livros ou se distraindo com um carrinho. Era difícil prender sua atenção para uma conversa, mesmo sua fala já tendo melhorado muito.

Quando a turma iniciou o quarto ano, Fernando chegou com uma novidade: queria ser professor de Geografia. Ele assistiu a vídeos sobre a disciplina durante todo o período de férias e estava afiado. Desenhava mapas e bandeiras no quadro e explicava aos alunos curiosidades sobre vários países. Formulou provas para que os colegas fizessem, mas a professora achou melhor que as crianças respondessem às questões através de pesquisas. Rafaela notou que Fernando falava mais quando o assunto o interessava. “Por quê?”

Então a resposta veio. Ao perceber que os alunos já estavam prontos para saber o “segredo” do Fernando, a professora disse que ele era especial. Fernando tinha autismo. Ninguém sabia o que era isso. Então ela continuou dizendo que autismo era um transtorno que causava dificuldade de comunicação e interação no menino. Mas que ele tinha uma inteligência muito grande e que, um dia Fernando poderia ser um grande cientista, assim como Albert Einstein, o gênio que, provavelmente, também era autista. Toda turma ficou maravilhada com as explicações da professora, principalmente Rafaela. A menina chegou da escola entusiasmada e contou tudo à mãe. Sim, o colega diferente era um gênio e, principalmente, era seu amigo.

“Mãe, imagina quando o Fernando se tornar um cientista famoso, eu poderei dizer que estudei com ele, que cuidei dele, que brincamos juntos, que somos amigos.” – Sua alegria não se traduzia apenas em palavras, mas também em sorrisos.

Porém, alguns dias depois, um fato transformou o sorriso de Rafaela em preocupação. Ela estava na sala de aula, ao lado de Fernando, quando uma colega foi até a professora para fazer-lhe uma pergunta. Nesse momento, o menino autista perguntou:

“Quem é ela?”

“Ué, professora, o Fernando não conhece a nossa coleguinha? Mas ela estuda com a gente há vários anos!” – admirou-se Rafaela.

A professora explicou que, por causa do autismo, o Fernando não se concentrava muito nas pessoas e, por isso não lembraria o nome nem a fisionomia de todos os colegas, que o cérebro dele era diferente. Mas nem por isso, os alunos deveriam deixá-lo de lado.

Naquele dia, Rafaela chegou triste e preocupada e desabafou com mãe:

“O Fernando não se lembrará de mim quando se tornar um grande cientista. Ele não se lembra nem de alguns colegas que estudam com ele hoje. Isso é triste.” – Sua mãe tentou consolá-la, mas não adiantou. A angústia de não poder mudar aquela situação era dolorosa. Aceitar o que não se pode mudar é uma das lições mais difíceis de aprender na vida.

Alguns dias depois, houve uma festa junina na escola. As crianças estavam todas vestidas a caráter, o ambiente enfeitado, comidas e bebidas típicas. A comunidade também compareceu. Rafaela estava bem animada com as amigas. De repente viu Fernando com a estagiária que o acompanhara no ano anterior. Rafa se aproximou dos dois e notou que o menino chamava a moça pelo nome enquanto conversavam. 
“Oh! Fernando se lembrou da Gabi!” – pensou a menina. Aquilo foi uma esperança para Rafa. “Se ele se lembrou dela, que não via há vários meses, poderá se lembrar de mim também. Talvez ele não me esqueça, talvez, em algum lugar do cérebro dele, meu rosto e meu nome fiquem gravados.”

Quando encontrou a mãe, foi logo falando de sua descoberta, com a alegria de quem tinha ganhado um presente. Então, curiosa, sua mãe perguntou:

“Por que é tão importante que o Fernando se lembre de você?”

A menina, com a sabedoria adquirida dos seus nove longos anos, respondeu:

“Eu acho importante o Fernando se lembrar dos amigos da escola. Seria legal encontrar ele na rua, lembrar que estudamos juntos, que éramos amigos... e que ele não era sozinho.”

Denizia Moresqui
11/8/2019

segunda-feira, 10 de junho de 2019

A FAIXA LARANJA




                                                                               A FAIXA LARANJA
      Por recomendação do neurologista, meu filho, Fernando, autista leve, começou a praticar karatê há três anos, a fim de melhorar sua coordenação motora e a socialização. No início, o Mestre Wesly e sua filha, Isadora, tiveram muito trabalho. Pois, Fernando era muito agitado e corria o tempo todo na hora da aula. Isadora me disse que até pensou em desistir dele. No entanto, pai e filha se dedicaram e conseguiram controlar bastante os impulsos do garoto, até que ele conseguiu a faixa amarela.
     Porém, algum tempo depois, Fernando se mostrou desleixado com as aulas. Não levava os exercícios a sério e ficava só brincando. Por isso, o mestre decidiu que ele não faria o exame para a próxima faixa. Atitude que eu e o Lui, pai do Fernando, apoiamos imediatamente. Nessa mesma época, o meu sobrinho também começou a praticar a arte marcial e, por ser mais velho e responsável, rapidamente chegou à faixa amarela. Quando Fernando percebeu que o primo passaria à sua frente, ficou desesperado.
     Um dia, fomos buscá-lo após a aula de karatê e ele estava irritado e choroso porque ele ainda estava na faixa amarela. Fomos passear de jipe pela zona rural e ele choramingando:
     _Eu quero ir embora do Itambé! Não vou mudar de faixa! – e por aí foi...
     Então eu disse a ele que nós não podemos fugir dos nossos problemas, mas sim, encará-los e resolvê-los. E continuamos o passeio. Como o Fernando não gosta muito de sítio, pediu para ir embora para a cidade. Então eu o pai dele perguntamos:
    _Ué, você não vai embora de Itambé?
    Ele pensou um pouco e disse:
    _ Tudo bem, vou resolver meus problemas.
   Desse dia em diante, sua atitude em relação ao karatê mudou totalmente. Ele não queria faltar às aulas de forma nenhuma. Fazia todos os exercícios sem reclamar e falava da faixa laranja o tempo todo. Mas dizia que, depois de pegar essa faixa, sairia do karatê.
    Então chegou o grande dia. No exame, Fernando fez o melhor que pode dentro de suas possibilidades. O fato de ficar em formação e obedecer aos comandos é algo inacreditável para quem o conhece desde bebê. No momento em que foi chamado para pegar a tão sonhada faixa laranja, ele comemorou muito e foi aplaudido pelo público que assistia ao exame. Foi fantástico. Ele não é bom em atividades físicas e sabe disso, talvez por esse motivo, tenha comemorado tanto.
     Na manhã seguinte, acordei com ele em pé ao lado da minha cama, segurando a faixa e o certificado e dizendo que agora queria a faixa verde. Ou seja, ele não vai parar de praticar karatê.
     Apesar das dificuldades do nosso filho, não facilitamos as coisas para ele. A vida não vai facilitar, por isso, sabemos que é preciso disciplina desde agora. Ele enfrentará lutas bem mais difíceis na idade adulta e o karatê o está preparando para isso.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Deise e Peteleco







DEISE E PETELECO
     Ele viu seus donos se mudarem, mas preferiu ficar no mesmo lugar e ficou conosco, vivendo em uma das casas de madeira da colônia de café, na Fazenda Anjo da Guarda, em Itambé. Era um cachorro grande, sem raça definida. A névoa do tempo não me deixa lembrar bem de suas cores, talvez branco, preto e caramelo. Já veio com nome: Peteleco, que significa “pancada desferida com pouca força pelo dedo”. Como nós, irmãos, brigávamos muito, o nome do cão era ideal, já tínhamos outro cachorro que se chamava Belisco.
     Pois bem. Peteleco viveu ali por alguns anos, depois nos mudamos para outra, bem próxima, e ele foi junto. Não era manso como o Belisco, talvez por o termos adotado já adulto. Mas a convivência era praticamente pacífica. Ele só havia atacado duas pessoas e, se atacasse a terceira, seria morto.
      E havia a Deise, minha irmã caçula, que nessa época estava com quatro anos. Ela não era muito chegada em gente, detestava que relassem nela; no entanto amava animais, principalmente cães, os abraçava o tempo todo. Eu preferia o amor de contemplação. Gostava de observar os bichos e imaginar o que pensavam, quais eram seus sofrimentos e alegrias. Já a Deise, não. Seu amor era maternal, incondicional, desses que não se explica, apenas se vive.
      Um dia, eu estava na varanda dos fundos da grande casa em que vivíamos. A Deise e o Peteleco juntos a alguns passos de mim. De repente, ela quis brincar de cavalinho com o cachorro e montou nele. O animal ficou furioso ou assustado, não sei ao certo, e deu-lhe uma mordida no lado esquerdo do rosto, bem próximo ao olho. Ela gritou em desespero. Quando olhei, vi muito sangue jorrar. Na verdade, foi a primeira vez que vi alguém sangrando, foi horrível. Minha mãe saiu correndo da cozinha, onde preparava o almoço para a família e os camaradas da fazenda. Pegou minha irmã no colo e gritou por socorro.
       Meu pai não estava em casa, mas meu tio veio correndo ajudar. O cão foi se esconder debaixo da casa. Quando o tio viu a Deise naquele estado disse:
       _Tem que matar esse cachorro!
       Para meu espanto, a Deise começou a chorar ainda mais e implorava para que não matassem o Peteleco. Mas, como? Ela estava defendendo um bicho que quase a deixou cega! Que amor é esse?
        Meu tio achou melhor levá-la ao hospital e deixar o cachorro para mais tarde. Minha mãe não foi junto, porque tinha que terminar o almoço para um monte de gente. A Ducimara, nossa irmã, foi com eles  à cidade de Itambé procurar socorro no hospital do Dr. Lafayete.
      Quando voltaram, o cão ainda estava escondido debaixo da casa. Meu pai chegara e decidira que ele precisaria ser eliminado. Então minha mãe foi até o local em que o animal estava escondido e o chamou. Como o Peteleco confiava nela, saiu de lá de cabeça baixa. Depois foi levado para longe de casa numa caminhonete, enquanto minha irmã chorava com um enorme curativo no rosto.
      Eu fiquei olhando o cão, mesmo sendo criança, eu sabia que era a última vez o que veria. Seu olhar era de medo, pareceu que ele olhara pra mim, pareceu que me pedira socorro. Mas naquela época, final da década de setenta, quando acidentes com animais e pessoas aconteciam, era comum que o animal pagasse com a vida. Assim era e assim foi.
      Até hoje, a Deise tem as marcas daquela mordida no rosto e até hoje, lembra com tristeza e revolta da morte do Peteleco. Há pessoas que são atacadas por cães e ficam com medo deles para sempre. Incrivelmente isso não ocorreu com minha irmã. Ela nunca deixou de amar e cuidar de cães ou de qualquer outro animal. Atualmente, por imposição da minha mãe, a Deise não tem cães. Mas quatro gatos a adotaram e dos quais ela cuida com todo amor. Cuida também de gatos e cães de rua. Eu continuo na contemplação, tenho animais e gosto deles, mas não daquele jeito. Por isso, admiro quem tem essa dimensão de amor. Porque os animais estão sempre Farejando Ajuda*.

*Grupo de voluntários que cuida de animais de rua em Itambé-PR.

O justo importa-se com a alma do seu animal doméstico, mas as misericórdias dos iníquos são cruéis. (Provérbios 12:10)


O circo no Moreschi

 Bairro Moreschi (Fazenda Anjo da Guarda), local onde, possivelmente, o circo fora montado                                           ...