NÃO ME ESQUEÇA
Uma história real com licenças poéticas
Rafaela começara a estudar de manhã no CMEI Branca de Neve. Era seu segundo ano no centro. Entrou na sala para conhecer sua nova turma. As crianças estavam agitadas com o primeiro dia de aula, a professora as acolhia com alegria. Todos os alunos tinham aproximadamente quatro anos.
Então Rafa percebeu um menininho com as duas mãos protegendo os ouvidos por causa do barulho das outras crianças. Aquilo tudo parecia incomodá-lo muito, mas ela não sabia o porquê. A professora pediu para que os alunos se sentassem e iniciou a aula.
Com o passar dos dias, a curiosidade da menina aumentava em relação àquele colega que não gostava de barulho. Outra coisa que percebera é que uma moça o acompanhava dentro e fora da sala de aula. Só ele tinha esse privilégio, o que Rafaela achou injusto a princípio. O menino parecia não gostar de brincar com outras crianças, preferia ficar sozinho ou na presença de adultos. Além disso, ele não conversava, apenas falava poucas palavras, algumas fora de contexto, outras com pronúncias quase incompreensíveis. Não olhava nos olhos das pessoas, seu olhar fugia sempre. “Qual era o segredo do Fernando?” - se perguntava a menina.
Um dia, durante a aula, a professora mostrou um cartaz com uma palavra para a turma. Ninguém sabia ler, não eram alfabetizados ainda. Para surpresa de Rafaela, o Fernando leu, o menino que quase não falava leu. Como aquilo era possível? Rafa ficou espantada, mas outras crianças não. Pareciam estar habituadas a vê-lo ler. Mais um mistério sobre o garotinho. “Será que a estagiária o ensinou?” – pensou.
E assim os anos foram passando e um laço de amizade foi se formando no coração de Rafaela por Fernando. Ela e outras meninas gostavam de cuidar dele quando a estagiária não vinha. Não deixavam outros meninos fazerem bullying com ele, nem que ele fugisse do centro, algo que já ocorrera um dia.
Mudaram de escola e a amizade continuou. Fernando era um tanto ausente. Às vezes brincava com as crianças e outras vezes preferia ficar sozinho, folheando livros ou se distraindo com um carrinho. Era difícil prender sua atenção para uma conversa, mesmo sua fala já tendo melhorado muito.
Quando a turma iniciou o quarto ano, Fernando chegou com uma novidade: queria ser professor de Geografia. Ele assistiu a vídeos sobre a disciplina durante todo o período de férias e estava afiado. Desenhava mapas e bandeiras no quadro e explicava aos alunos curiosidades sobre vários países. Formulou provas para que os colegas fizessem, mas a professora achou melhor que as crianças respondessem às questões através de pesquisas. Rafaela notou que Fernando falava mais quando o assunto o interessava. “Por quê?”
Então a resposta veio. Ao perceber que os alunos já estavam prontos para saber o “segredo” do Fernando, a professora disse que ele era especial. Fernando tinha autismo. Ninguém sabia o que era isso. Então ela continuou dizendo que autismo era um transtorno que causava dificuldade de comunicação e interação no menino. Mas que ele tinha uma inteligência muito grande e que, um dia Fernando poderia ser um grande cientista, assim como Albert Einstein, o gênio que, provavelmente, também era autista. Toda turma ficou maravilhada com as explicações da professora, principalmente Rafaela. A menina chegou da escola entusiasmada e contou tudo à mãe. Sim, o colega diferente era um gênio e, principalmente, era seu amigo.
“Mãe, imagina quando o Fernando se tornar um cientista famoso, eu poderei dizer que estudei com ele, que cuidei dele, que brincamos juntos, que somos amigos.” – Sua alegria não se traduzia apenas em palavras, mas também em sorrisos.
Porém, alguns dias depois, um fato transformou o sorriso de Rafaela em preocupação. Ela estava na sala de aula, ao lado de Fernando, quando uma colega foi até a professora para fazer-lhe uma pergunta. Nesse momento, o menino autista perguntou:
“Quem é ela?”
“Ué, professora, o Fernando não conhece a nossa coleguinha? Mas ela estuda com a gente há vários anos!” – admirou-se Rafaela.
A professora explicou que, por causa do autismo, o Fernando não se concentrava muito nas pessoas e, por isso não lembraria o nome nem a fisionomia de todos os colegas, que o cérebro dele era diferente. Mas nem por isso, os alunos deveriam deixá-lo de lado.
Naquele dia, Rafaela chegou triste e preocupada e desabafou com mãe:
“O Fernando não se lembrará de mim quando se tornar um grande cientista. Ele não se lembra nem de alguns colegas que estudam com ele hoje. Isso é triste.” – Sua mãe tentou consolá-la, mas não adiantou. A angústia de não poder mudar aquela situação era dolorosa. Aceitar o que não se pode mudar é uma das lições mais difíceis de aprender na vida.
Alguns dias depois, houve uma festa junina na escola. As crianças estavam todas vestidas a caráter, o ambiente enfeitado, comidas e bebidas típicas. A comunidade também compareceu. Rafaela estava bem animada com as amigas. De repente viu Fernando com a estagiária que o acompanhara no ano anterior. Rafa se aproximou dos dois e notou que o menino chamava a moça pelo nome enquanto conversavam.
“Oh! Fernando se lembrou da Gabi!” – pensou a menina. Aquilo foi uma esperança para Rafa. “Se ele se lembrou dela, que não via há vários meses, poderá se lembrar de mim também. Talvez ele não me esqueça, talvez, em algum lugar do cérebro dele, meu rosto e meu nome fiquem gravados.”
Quando encontrou a mãe, foi logo falando de sua descoberta, com a alegria de quem tinha ganhado um presente. Então, curiosa, sua mãe perguntou:
“Por que é tão importante que o Fernando se lembre de você?”
A menina, com a sabedoria adquirida dos seus nove longos anos, respondeu:
“Eu acho importante o Fernando se lembrar dos amigos da escola. Seria legal encontrar ele na rua, lembrar que estudamos juntos, que éramos amigos... e que ele não era sozinho.”
Denizia Moresqui
11/8/2019